quinta-feira, 27 de agosto de 2009

You've Got Mail


A saudade pode ser uma repentina estiagem na boca, um lume frio na garganta? No abafado daquela sala, engoli em seco perante o poder evocador da voz de um ausente.” Mia Couto, in Jesusalém.

E contou-lhe uma história, porque não gosta de sermões ou de leituras escritas. Porque, tudo o que é dado de antemão é antecipadamente adormecido. Também, porque as histórias são o meio ideal para se contar aquilo que não se tem coragem para dizer. Assim, poderá ela desvendar o seu verdadeiro sentido.

Um certo dia, alguém escreveu: “ […] as palavras podem ser o arco que liga a Morte e a Vida. É por isso que te escrevo. Não há morte, nesta carta.”. Apenas vida. Isso mesmo. Vida, luz, amor e confraternidade. Deixadas para trás as brigas, as invejas e as injustiças. Até mesmo as rupturas. Aquela mesma pessoa mandou outro alguém dizer: “ […] tive as minhas mortes, felizmente, todas elas passageiras”. Podemos morrer várias vezes ao longo da vida, contudo nada está realmente morto até que esteja enterrado. Por isso é bom que se vá morrendo, se transformando, se mudando, talvez se adaptando, nunca se enterrando. Morte, não tem de ser sinónimo de perda.

Abandonado e Ndjira sempre viveram juntos, sempre fizeram tudo aos pares. Habituaram-se a pensar a dois, mesmo quando ainda eram um só. Era como se fossem irmãos gémeos. No meio de tantos estranhos e de múltipla novidade, eles eram a certeza mútua, o passado e o futuro dentro do efémero presente, projectado sobre o que haveria de vir. O corrimão quando as escadas são demasiado íngremes, o andarilho quando as pernas ainda não são posse, alheias. Os amigos eram os mesmos, assim como as alegrias e as tristezas. Ambos acreditam num só Deus, mas em vários Anjos, cada qual com o seu nome. Dizem que cada um tem o seu, que os acompanha poisado no ombro direito. Faz-lhes lembrar o anjo ou demónio que insiste em fazer aparições nos desenhos do Tom, o gato, e de Jerry, o rato, sempre apontando o mal, ou anunciando o bem. Ambos são filhos de Deus. Os dois, já passaram por mais do que esta vida e aquela. Juntos. Já percorreram, de carro ou mentalmente, também, vários milhares de quilómetros de terras desconhecidas e de línguas estrangeiras.

Já participaram no poisar de tijolos novos sobre velhos, para construírem novo lar. Assim como, também já conspiraram na destruição daqueles que foram, um dia, seus leitos, para que pudessem passar a ser os de novos estranhos, de língua portuguesa. Também já assistiram, impávidos, cada um no seu canto, sem se olharem, apenas se sentindo ou cheirando, por vezes até se chorando, mas nunca se ferindo, à força destrutiva da inquietante fragilidade das paredes de uma família, ou também, frequentemente, à ausência voluntária de um ente querido, hoje ainda, quem sabe, por conhecer verdadeiramente.

Como Leão para Caranguejo, são fruto dos memos corpos, não dos mesmos hábitos. Uns paternos, outros maternos, alguns irritantes, poucos absurdos, quaisquer genéticos, nenhum reflectido, todos intrínsecos. Embriões distintos, cada qual vai seguindo o seu rumo, percorrendo becos sombrios, por vezes traiçoeiros. Mas sempre de olhos um no outro: um olho nas pedras, outro no irmão mais próximo.

Esta e aquele não se largam, de alma pelo menos. Mesmo que separados por rios e montanhas, ou mesmo por planetas e galáxias, nunca poderão estar distantes porque as memórias não lhes permitem. Ambos sabem que a viagem não é para ser esquecida, mas sim lembrada, revista e rebobinada, falada, um dia quem sabe, escrita.

Abandonado não se importa de estar sozinho porque precisa de tempo para pensar e escrever, da sua gruta, sempre atento aos barulhos familiares, lá de fora. Gosta de estar longe e sentir-se próximo, isso sim. Foi habituado a isso. Olhar as estrelas nos céus, mais densos cá do que lá. No outro dia viu uma estrela cadente, que sorte, este tipo de coisas nunca lhe acontece! É rapaz atento às mais pequenas formigas, mas o elefante, vermelho de óbvio, passa-lhe completamente despercebido, por entre o mato. Gosta de por vírgulas, na sua vida, onde elas não existem. Complicar coisas descomplicadas. Acha que desconsegue aquilo que não alcança, nunca o foi, mas passou a ser rapaz inseguro. Detesta estar acompanhado, no meio de muitos, colado, tal moço num chapa, e, porém, sentir que ninguém o vê ou mesmo o conhece. Ninguém se esforça, isso não. Por isso é que, ultimamente, veste de branco, não anda igual a si próprio, símbolo de transparência, não de pureza. Quase que desistiu do mundo e dos outros, destes sobretudo (“L’Enfer c’est les autres”, lembra-se). Mas o que é o mundo, senão os outros? Sem outros, eu não faz sentido. A Família é o seu Jesusalém, “[…] esse lugar, para além de todos os lugares”.

Aqueloutro, lá de cima, ainda escreveu, numa tarde esperançada: “Quem ama, ama para sempre. Nunca faças nada para sempre. Excepto amar.” E eu acrescento: “Ama, ainda que sem retorno. Amar não é um ou dois, vários períodos. Amar é uno, é amar a viver.”

A ti, que lês e relês atentamente, lá longe, entre o mar e os montes, festas e lareiras, te dedico este texto.

[as expressões são, tirando duas, de Mia Couto].

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Cláudia

A Cláudia é ávida leitora. Inteligente e perspicaz, é cautelosa. Para ela, tudo não passa de um jogo de amor-ódio, de detesto-te e de quero-te agora neste instante, de nem te posso ver à frente e de não passo sem ti. És a minha droga, o meu pó branco, o meu LSD. Por isso, logo que conseguir que ele se entregue a ela, a primeira coisa que lhe fará será cheirá-lo de cima a baixo, tratarei bem de ti, prometo! No seu caso, não é ela que escolhe, é ela que é escolhida, sempre assim foi, desde menina. Não há tempo nem hora, momento ou local, o tempo é indecifrável, o sítio indiferente: pode ser num restaurante ou na rua, num parque ou num autocarro, na confusão do dia ou à luz da noite, num grupo de amigos ou num recanto perdido, repleto de solidão. O importante é que eles lá estejam os dois, que os seus destinos se cruzem, se entrelacem, que não haja ruptura possível.

Há muito que a Cláudia está sozinha, que ninguém lhe faz companhia nos longos caminhos que ultimamente tem percorrido. Precisa de ajuda e de aconchego. Algo que a faça renascer, e nunca mais se afogar naquelas profundas águas mortas de onde surgem aqueles braços castanhos moribundos chamando pelo seu nome, para a levar e nunca mais a trazer: não serás mais transparente ou invisível, vem para um mundo onde nada existe e tudo se realiza. A vontade é muita, a tentação imensa. Não fossem os outros, os que estão perto mas nunca lhe chegam, já se teria entregue, içado a bandeira branca e poisado as armas. Desarmada e prevenida, teria sucumbido, caída na tristeza eterna, no vale dos vivos ainda mortos, onde apenas gritos e ajudas se ouvem, onde todos querem e nenhum pode, onde todos são e cada qual não existe.

Ela sabe que é preciso fleurtar, entusiasmar, atiçar, para que não seja mais uma na multidão do olhar dele. Porque razão haveria ele de a escolher, logo ela, cheia de problemas, triste e feia? Borbulhas e acne são a sua essência, ela nasceu para aquilo, para se lamentar eternamente. Por isso Cláudia passa por ele sempre que pode, é capaz de lhe tocar, até mesmo, num acto de loucura, de lhe piscar o olho, com sorte nem estará a mirar aquela loira morena de olhos verdes azuis, talvez tenha sentido o seu perfume de indiferença, captado o seu charme, e talvez não a sua banalidade.

Até que o dia chega e os astros se alinham. Ao passar por ele mais uma vez, já sem qualquer esperança ou mesmo grande interesse, ouve-o que a chama. Deve ser engano, nunca a olhou, nunca lhe falou, e agora até lhe assobia lá de longe. Os amigos todos à volta dele, com grandes sorrisos malandros, bem coloridos e sublinhados, indubitavelmente reveladores. Põe-se a caminho, respondendo presente ao tão aguardado chamamento. Finalmente, consegue entrar para aquele clube tão restrito, onde apenas os sábios nestas matérias são convidados. Para Cláudia, ele já é membro honorário.

De sorriso tímido nos lábios, pega no Samuel pela mão e acaricia-o de raspão, como que não tendo tempo a perder. Dirigem-se para a porta de saída onde só os dois sabem o que poderá acontecer. De repente, são interpelados por uma senhora, velha e toda enrugada, de óculos na ponta do nariz e com mau hálito. Está tudo perdido, pensou.

- “Desculpe! Esqueceu-se de pagar. São 13,50€. Vejo que leva Samuel Beckett, En Attendant Godot, boa escolha. Vai gostar, vai ver. Boa leitura".

Sinto que voltei a ganhar o amor pelos livros, pelos seus cheiros, pelas suas histórias, mas não pelas suas imposições, apenas pelas suas lições. Não há nada comparável ao sentimento de descobrir um novo livro: o olhar, o sentir, o pesar, o cheirar, o folhear, e finalmente, o desvendar. Descobrir o que faz dele único e merecedor da dispensa do nosso precioso tempo é algo simplesmente gratificante: o porquê daquela capa, daquela cor, daquele título, a disposição das letras, o desenho escolhido. Será que existe mais alguma coisa que o autor nos quis contar para além do óbvio, mas de maneira a que unicamente os mais atentos e perspicazes o pudessem descobrir, como quem conta um segredo ao ouvido e, de seguida, pisca o olho, ficando os outros, à volta, a olhar repletos de inveja?

O que gosto nos livros é que são feitos para aprendermos, mas sobretudo para sobre eles reflectirmos. Podemos interpretá-los como queremos, adapta-los à nossa experiência. Podemos incliná-los para o lado que nos dá mais jeito ou que achamos mais justo. Por isso podem também tornar-se perigosos, pela ausência paternal do autor que deixa de estar do nosso lado a explicar-nos o que quis dizer.

Aprendi que muitas coisas não se dizem, guardam-se cá dentro. É uma pena. Todos nós podíamos ajudar-nos mais uns aos outros. Percebi que são poucas as pessoas que querem ouvir, se é que alguma. Por isso há quem escreva, para dizer aquilo que ninguém quer ouvir, na esperança que eventualmente as queiram ler. Assim, essas pessoas, sempre poderão defender-se dizendo que nunca ninguém lhes disse, não os avisaram, porque não há testemunhas, apenas o leitor e o autor, num permanente e honesto “tête-à-tête”, sendo que a única parte capaz de quebrar este elo será o leitor.

domingo, 16 de agosto de 2009

A Viagem


“Um dia, porém, depois de mais uma paragem para colher imagens, ao regressar ao jipe vi que tinhas ficado ao lado da pista, a olhar em frente, como se te tivesses desligado de tudo. Ia gritar-te, buzinar-te, quando qualquer coisa na maneira como tu estavas em pé a olhar o deserto, qualquer coisa na maneira como tinhas as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça ligeiramente inclinada de lado, o cabelo varrido pelo vento, me fez ficar quieto ao volante. E fiquei assim a observar-te até que tu te virasses e visses que estava à tua espera. Aprendi que é preciso dar tempo aos outros para olharem”. Miguel Sousa Tavares, in No Teu Deserto.


Sophia tinha a imagem que eu tenho da Viagem. Tudo se espelha. Nada se cria. Tudo continua. O melhor da vida é mesmo o mais difícil, a viagem.

A Viagem, a verdadeira viagem, é aquela finda a qual não se chega a casa, aquela que não desemboca na chegada, em que apenas portagens existem, daquelas de se tirar bilhete, nunca das de pagar, porque o ciclo nunca acaba, apenas se transforma: montanhas, planícies, desertos, lamaçais, luz escura.

A Sofia, agora minha personagem, tem medo porque nada pára e nada lhe é familiar porque nunca nada lho foi. Grita mas nada lhe devolve o eco, aliás, nunca chega a ouvir a sua própria voz. Mesmo assim continua a tentar desvendar o ser, o viver e o acontecer, nunca o amanhecer pois esse passa a anoitecer, não perdura.

Começa então a ficar viciada, viciada em, em mudar, em transformar, em encontrar, em perder, em conhecer, em esquecer (Sofia leu a Viagem pelo Oriente de Hesse, “Toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens reflectindo o mais violento e mais cego dos desejos humanos: o desejo de esquecer”), se possível, rapidamente, apenas deixar o cheiro emprenhado nas suas peles, delas nunca mais se lavar, sem se aperceber que com elas está suja, viciada, colada em aprender, em criar espaço para novas futilidades, falas e expressões, velhos desconhecimentos conhecidos de todos, tradicionais histórias de actuais acontecimentos de citadinas personagens formatadas e computorizadas, programadas para não se tornarem em repetidos cromos da interminável e improrrogável caderneta humana, em espetar aquela afiada e dolorosa agulha da mudança, da revolução e da reviravolta, da inconsistência, da agitação e da falta de rumo, de casa, de paz e de descanso, mas que provoca tamanha adrenalina, subidas e descidas de moral, descontrolo reconfortante e despreocupante, por vezes angustiante mas anestesiante. It’s a Rush!

Já picou, já furou, já viciou e já fez efeito. Sofia já não a quer mais, quer outra. Viagem.

Quem já viajou sabe, quem nunca viveu, cala. Está no escuro, não acordou, não nasceu para o mundo, apenas nele ou nem isso, nem nele se concretizou, não arriscou, não perdurará, morrerá, não se transformará em terra dele, ficará corpo, carcaça, podridão. Cuspir-lhe-ão, chutá-lo-ão, rasgá-lo-ão, rejeitá-lo-ão. Passará a corpo sem alma, a exterior sem interior, a pão sem miolo, a lágrima sem dor, a fala sem som, a comida sem gosto, a chuva sem nuvem, a palavra sem letra, a cantor sem musica, a sapato sem pé, a homem sem Deus, a pai sem filho, a país sem terra, a África sem continente, a ódio sem amor, a conhecimentos sem amigos, a professor sem alunos ou livros, àqueles sem estes, a nós sem eles, a eu sem tu, a mim sem ti. Sozinho.

Sofia também já tentou imaginar o mundo sem mundo, e nada, nunca conseguiu. O Miguel, no meio do deserto, escreveu-lhe uma vez, dizendo: “Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há musica, nem ruído, nem som algum […]”. A imagem que ela tem é a de um possível painel quadrado preto escravo, no meio, alguma estrela, no lugar da terra não se descobre nada, está num permanente contínuo regresso, tudo ou mesmo nada passa por si a correr ou mesmo devagar, de frente para trás, ou será a imagem que arranca, ela, de trás para a frente, passando pelo nada e ainda pelo tudo? De repente alguém, talvez Deus, faz Zoom-Out. Então, aparece a totalidade, branca, agora preta, cinzenta, e preta outra vez. E a face de Sofia, de perfil, no canto superior esquerdo do painel, e volta tudo ao mesmo, ao já visto, ao começo do imaginário. Repete-se. E fica nisto eternamente. Na dúvida ("What if, what if I got it wrong, and no poem or song could put right what I got wrong?”), mas pelo menos na única certeza que lhe dá conforto, a da eterna dúvida.

São mais as perguntas do que as respostas, mais as interrogações do que as afirmações, os pensamentos do que as conversas. Por isso Sofia fica calada, porque estar calada é estar atenta, e porque estar atenta é ter a capacidade de estar distante estando perto, de estar calma quando os outros estão agitados, de ver para além da vista, como uma avestruz. Aqueles que muito falam não estão atentos, estão na lua. Aqueles que estão calados não estão a dormir, estão a observar e a engolir, absorver o que se passa, são bichos mais activos do que se pensa. Passivos são, outra vez, aqueles que estão na lua.
Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio.” Confidenciou-lhe Miguel, desertando.
Falar não é encarar a verdade, é fugir-lhe a 7 pés. Observá-la é encará-la nos olhos, sem medo!
Em vez disso, Sofia escreve porque: “Escrever é usar as palavras que se guardaram”; daí também que ela não fale muito, porque: “se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer” escreveu-lhe ainda Miguel, quase romanceando.

Por isto tudo é que, para Sofia, a viagem é para ser apreciada, não vivida, porque quem segura o leme não é ela, é ele, talvez Ele, quem sabe? Ela?


[as citações são, tirando duas, expressões de Miguel Sousa Tavares]

sábado, 8 de agosto de 2009

Eu, Mia Couto.

Sabes porque é que o Mia Couto se chama Mia, diminutivo? Não, não é o nome dele, embora seja moçambicano e nem sempre estes nomes sejam vulgares, não, não é o nome dele. Na verdade não sei qual o seu verdadeiro nome. Foi-me dito que talvez fosse Francisco.

- “Não, talvez não fosse Francisco. Ele tem um irmão que se chama Fernando.” disse aquela rapariga bonita, ainda dentro do carro.

Quem me dera que fosse Francisco. Era mais um. Acredito com todas as minhas forças, e esforço-me para tal, que todos os Franciscos são boas pessoas. Acredita. Sempre que conheço um novo Francisco tento aplicar esta teoria:

- “Todos os Franciscos são boas pessoas, sempre foram e sempre serão.”

Às vezes dou por mim a repetir na minha cabeça esta frase. São boas pessoas, têm de ser. Obrigo-me a acreditar nela.

- “Este Francisco, deixa cá ver os defeitos dele.”

Mas a conclusão é sempre a mesma. Defeitos à parte são sempre boas pessoas. Não conheço nenhum Francisco que seja mau. Ainda bem. É nome sagrado. É como Portugal. Acredito que sobre o nosso país se deitou Nosso Senhor, não é por acaso que somos dos povos mais crentes da Europa (sim, ao contrário do que o João Tiago uma vez disse, que só me apeteceu dizer-lhe: “O Senhor não é digno de ser Português, tem o direito de ser contra a Igreja, não tem o direito de transformar o seu país naquilo que ele não é.”), somos pouco conflituosos, temos grandes valores, e que acolhemos Nossa Senhora de Fátima. Lembra-te, foi Nossa Senhora que escolheu Portugal, escolheu-nos a nós, escolheu-me a mim e a ti. Nunca te esqueças disso. A nós, para sermos mensageiros do mundo.

Se nascesse outra vez queria ter-me chamado Francisco Maria. E gostava de ter nascido em Portugal.

Naquele dia em casa do Moisés, falava-se de diplomacia:

- “Sabe o que é que quer dizer CD, nas matrículas, aqui em Moçambique?” perguntou o anfitrião, com ar traiçoeiro.

- “Claro, Corpo Diplomático” respondi pronta e orgulhosamente.

- “Não! Isso é no resto do mundo. Aqui é Come e Dorme. Ahaha” rematou.

Foi Golo. Aplaudi de pé, tal adepto eufórico. Alguém chutou para canto:

- “Cuidado que o pai do Francisco é diplomata!” ouviu-se.

Se o Moisés fosse branco teria notado que tinha corado naquele instante. Deu-me vontade de rir descontroladamente pela situação em que se tinha enfiado. Gosto muito da simplicidade natural deste personagem, homem agradecido e em paz com a vida, parece-me. Miúdo nascido pobre numa aldeia do interior de Moçambique, viveu sem electricidade toda a sua juventude.

- “O meu primeiro par de sapatos foi o 42!” disse ontem à mesa. Tentei imaginar.

Os seus filhos, agora noutro continente, dizem para ele não ser mentiroso. Não têm a mínima noção daquilo pelo que o pai já passou. Ainda não.

- “Toma lá este dinheiro. Agora vais para um país chamado Portugal, ali na ponta da Europa. Vais para uma cidade chamada Porto. Vais estudar Economia na FEP” foi-lhe dito.

Estávamos em 1985 e Moisés é inconsciente. Não sabe para o que vai. Quando lá chegou os portugueses falavam rápido demais:

- “Não percebia nada daquilo” disse, enquanto engolia uma garfada de peixe.

Ainda no aeroporto de Maputo deram-lhe um casaco amarelinho. Imaginei o contraste. Sorri por dentro.

Hoje é homem influente e está bem na vida. Moisés podia nem ter percorrido este caminho, gostaria dele na mesma, do ser humano. E se o tivéssemos visto no meio do campo a laborar a terra? Não teria mudado muito a minha vida (melhor dizendo, até teria, não estaria a comer este maravilhoso peixinho, aqui em casa dele, em frente ao Jardim dos Namorados). A dele teria. Quando sai de casa dele, à noite, pôs o braço à volta dos meus ombros enquanto falava com o resto dos convidados. Senti-me amigo.

- “Homem terreno, nascido de mulher, empanturrado de excitação” disse a amiga Mafalda.

Não percebi, mas gostei. Soube-me a Doce de Leite.

Mas Moçambique não é mais um país pobre, não. Os padrões é que são diferentes! As pessoas não andam vestidas com trapos, isso achamos nós. Isso é miopia dos teus olhos de europeu. E se nós andássemos como eles, eles já não andariam vestidos de trapos, pois não? Às vezes podes ser mesmo formatado. No fundo o mundo ocidental vive numa verdadeira ditadura, a da imagem e dos preconceitos.

- “Neste país não há padrões, é disso que eu gosto, o padrão é não haver padrões. Provoca esta diversidade que vemos, inexistente na Europa, não achas?” reflectiu a Maria José.

Pádaria Millenium, uma verdadeira barraca:

- “Ahaha, não posso. Que giro!”

Não, este país não é pobre:

- “A maior pobreza é não se ter consciência da riqueza que se tem.” Ouviu-se.

Nós portugueses somos bem mais pobres que estes aqui. Temos tudo, tivemos ainda mais. Só nos lamentamos, choramingamos encostados aos muros, para não apanhar sol, está muito quente, diz ele. Pff..!! Acorda Portugal!

Mas aquela rapariga do carro era mesmo bonita, não era? Não tinha nada de especial, mas era gira. Não era ela que era gira, era a pessoa que ela é.

Depois do jantar fomos deixar a Célia a casa. Estava lá um gato preto, de olhos amarelos. Olhou para mim e fugiu, entrou por entre as grades da casa da frente. O gato, o que faz ele? Mia. Quando era garoto, o Francisco também miava, falava baixinho, por isso ficou Mia. E de quem era a casa da frente? Era do Francisco. Do Mia Couto. Coincidência?

- “Encontrei o Santo Graal” senti.

Kanimambo, Senhor, pelo dia que me ofereceu hoje. A si lhe ofereço este relato.

Sábado à tarde


Um dia hás-de ir para África. Escolhe Moçambique. É ali que se sente o peso da nossa maravilhosa aventura, da nossa viagem, da nossa ousadia, do peso dos nossos antepassados. Se sentires o que eu senti, não trairás a nossa memória. Não te encantes com as sereias que te chamam. Amarra-te ao cheiro da terra molhada.” Aniceto Afonso, in O Meu Avô Africano.


O meu caderno e o meu Avô Africano algures na minha mão esquerda, o braço meio flectido tal Sr. Doutor. Uniball na minha mão direita, abre e fecha a tampa sem cessar.

Costa de Maputo 15h59, o sol começa a ameaçar ir-se embora. Avenida Friedrich Engels paralela à Julius Nyerere mais perto do mar. A residência da Embaixada de Portugal marca presença. Do lado do mar, lado direito, existem pequenas parcelas de jardim mal arranjadas: por baixo da relva não existe terra, existe sangue, terra vermelha, cor de barro. Alguém uma vez disse que em África a terra era vermelha por causa dos litros de sangue já derramados, tantos que, emprenhados na terra, nunca mais desaparecerão para que nunca mais nos esqueçamos, e nunca mais se repitam as atrocidades cometidas no passado e no presente. Para lá dos pequenos jardins, não existe qualquer protecção: uma queda de 30 metros, fácil. Lá em baixo a marginal, meia esburacada. De vez em quanto passa um jipe, vai em sentido contrário para mim. No canto do lado direito está ancorado, lá em baixo no fundo, o clube náutico. Uma esplanada, guarda-sóis vermelhos, várias pessoas, algum vento. À volta da piscina, 15 metros onde algumas pessoas nadam, o empregado negro serve às mesas. Guarda-sóis amarelos.

Na Friedrich Engels, agora nas minhas costas, existem bancos verdes à portuguesa. Do lado esquerdo, o mar de costas, um pai negro brinca com a filha vestida de cor de rosa, bonito contraste. Um vendedor passa com um carrinho de mãos, de empurrar, uma carripana velha e ferrugenta. O pai pára-o e compra um chocolate para o seu amor mais recente. A filha excita-se e aponta a guloseima enquanto o pai a abre. Do outro lado, uma avó branca e loira traz a sua neta, negra, às costas aos saltinhos. Estão animadas. Aqui existem muitas misturas, não estou habituado mas é do meu agrado. São sul-africanas. Agora no chão a neta anda de trotineta. Vai ter com a filha e faz-lhe festinhas. A avó detém-na, cheia de vergonha, I’m sorry, sir. Continuam o seu caminho, passam pela embaixada. No fundo da rua, a neta vira-se e, de londe, acena-me dizendo adeus. Bye-Bye!

Continuo o meu caminho com a companhia de Engels, pessoa calada, infelizmente, o mar ainda do lado direito. Mais à frente, olhando o mar, algumas colunas brancas em forma de U sustentam um tecto de verduras. Forma-se como que um corredor abrigado da chuva, não do vento. Lá dentro os mesmos banquinhos portugueses.

Ainda mais à frente, do lado direito, um caminho parece que se atira da colina abaixo, curva contra curva. Com vista para o mar, ainda os banquinhos, desta feita sem cor nenhuma: apenas engessados em cimento. Em cima de um deles, um jornal, as parangonas: “Sabe o que é uma Úlcera Tepática?”. Do lado esquerdo do caminho, sempre seguros na colina, vigiando o mar, vários andares muito baixinhos e discretos. Alguns deles em vez de varanda desvendam uma piscina no seu lugar. Gostava de viver aqui. Muito.
Um velho negro vem a subir em sentido contrário, não me olha, é cego, mas vê-me, melhor do que eu a ele. Dando-lhe o braço, um miúdo ajuda-o no seu caminho. Olhou-me nos olhos e fez-me sinal com as sobrancelhas, levantando-as. Retribui o gesto.

Sentado no passeio da Avenida Barnabé Thaiwé oiço o barulho do vento passando por entre as folhas das palmeiras. Barulho novo, nunca antes o ouvira. Queria tanto estar aqui com os meus amigos e primos, mostrar-lhes isto, irmos prós copos e conhecermos o povo moçambicano, lá no campo, em Boane ou em Marracuene, talvez em Moamba.

No passeio, por detrás de mim, passa um casal sul-africano branco, com seu filho negro no carrinho, estão em grandes gargalhadas os três. Do filho, mãos na parte da frente do carrinho, apenas os olhos, grandes e redondos, se vêm.

Um dia também quero estar assim: uma mulher a meu lado, um filho a meus pés, tímido, agarrando-me na perna.

Risada

Todos os dias a toda a hora acho que vou morrer. Deixar de viver. Ou melhor, todos nós podemos morrer a qualquer instante, basta estar vivo. Não é isso. Todos os dias a toda a hora acho que vou mesmo desta para melhor:

- “Cuidado ao passar ai por baixo, isso pode cair, e depois?” ou

. “Dói-me a cabeça deste lado aqui, é agora!” ou

- “Sinto que se fechar os olhos, não volto a acordar” ou ainda

- “Porque é que o meu coração não bateu agora, só agora?” inspiro fundo. Taquicardia.

O Zé está no PC, como é hábito:

- “Ó Berto, chega aqui e lê isto. Este Xicão é mesmo um fala-barato!”

Outra coisa que me perturba todos os dias (ou quase, depende da barriga): quando estou na casa de banho acho que vou ser picado no rabo por um mosquito gigante ou que uma mão me vai agarrar e puxar para os confins do mundo, ficarei cego e viverei para sempre nos esgotos. “Espero que isto não seja efeito dos remédios para a malária”.

- “Está a ver? Não tem noção, o gajo!” insistiu.

- “Anda lá que o Eiró está no Sical à nossa espera já.” Aqui, o Alberto baixa-se para apertar os cordões, má sorte, a t-shirt era curta.

- “Ó Boi, essas boxers são minhas!”gritou o Zé, quando o Alberto se lançou rua fora, fugindo.

Escorregou numa casca de banana. Caiu de um prédio e espalmou-se todo, caindo 20metros. Ficou Panqueca!

Adoro os meus sonhos, uma vez acordei a rir. Não sou bem acabado!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Julius Nyerere. Filme. Restaurante. Vergonhas. Vocês desse lado.





Hoje, na Julius Nyerere houve um apagão geral, mas apenas do lado de lá da rua. Geral, portanto.

A Julius Nyerere é uma das principais ruas do centro da cidade de Maputo, da parte de cima da cidade, e que tem vista para o mar lá em baixo, em contraposição com a parte de baixo da cidade, a baixa, onde se situa por exemplo a Gare dos Caminhos de Ferro de Moçambique, uma estação lindíssima, ainda do tempo colonial, hoje restaurada. Li algures na net que, curiosamente, nessa mesma estação foi construída uma nova entrada no âmbito das rodagens do filme “Blood Diamond” com Leonardo Di Caprio num dos principais papéis. O filme em causa pretende retratar mais um dos grandes problemas existentes no continente africano, a situação gerada pala existência de um mercado de diamantes que envolve milhares e milhares de dólares todos os anos. O filme passa-se em vários países mas neste caso pretendia retratar a passagem do personagem pela Serra Leoa, daí que Moçambique, se bem me lembro, não conste no filme qua tale.

Como já não tinha comida para jantar hoje em casa, tinha mesmo de ir a um qualquer restaurante aqui perto. Todos afectados devido ao dito apagão, que fazer? Com algum dinheiro no bolso (muito para Maputo, ainda mais para o verdadeiro Moçambique) dirigi-me a um dos dois restaurantes abertos. Fui ao primeiro pois o segundo, foi-me dito, era caro. Comi sopa de legumes (cozidos, senão era melhor não comer, já sei), uma meia-porção de frango grelhado (para poupar) e uma Coca-Cola na lata com palhinha (“e fechada, sff!”), sem gelo nem limão (para não ficar doente e voltar de riquitó para Lisboa, porque “para o Hospital Central de Maputo não vou nem que apanhe cólera” pensei). Quando chegou a conta, nem quis acreditar:
- couverts (“aqui?”) = 80 Mt;
- sopa = 80 Mt (“tanto como os couverts?”);
- frango = 320 Mt (“deve ser frango moçambicano”, o brasileiro, exportado, chega a ser mais barato);
- coca cola = 100 Mt (quando cá cheguei comprei 1L por 22Mt);
- TOTAL = 580Mt, 15 € (“não tenho vida para isto!”).

Até senti vergonha de mim mesmo. Acabara de gastar mais ou menos um terço do salário mínimo de Moçambique, ou seja, muito mais do que a grande parte dos moçambicanos ganham num mês, já que duvido que todos os moçambicanos no desemprego tenham acesso a um possivelmente existente (ou talvez não) rendimento mínimo garantido.
Foi a terceira vez que senti vergonha de mim mesmo desde que cá cheguei. A primeira foi logo ao acordar no primeiro dia, 2 de Agosto. Quando despertei estava felicíssimo, logo veio a vergonha. Apercebi-me que o principal motivo da minha viagem tinha sido egoísta: sair de Lisboa, sentir-me melhor, ganhar experiência pessoal e uma vantagem curricular, e só depois (infelizmente, “juntando o útil ao agradável”) ajudar os que precisam. Senti-me culpado:

- “Ir para fora é muito bonito, porque não fazer voluntariado dentro de Portugal?” lembrava-me em Lisboa, ainda durante os exames, uma amiga que admiro.


Até que ponto egoïsmo e altruismo não são as duas faces da mesma moeda?

A segunda vez foi hoje à tarde. No meio de tanta confusão no centro da cidade: carros, camiões, poluição, motas, apitadelas, pessoas e cães no meio da estrada, vendedores de sonhos perdidos e abandonados ou de restos de um monte de lixo sem interesse, todos, rapazes e raparigas, homens e mulheres, mães grávidas e pais mutilados, todos, perseguindo os turistas europeus com ar bem alimentado e perfumado como eu. No meio daquilo tudo, eu, de mocassins escuros com “ponpon’s”, calça beige e camisa branca de mangas arregaçadas, botão de cima desabotoado e fio de prata ao pescoço segurando uma cruz (14.5.95), uma medalha de São Francisco de Assis e um pequeno Agnus Dei oferecido pelo meu avô materno ainda era eu criança, movimento-me tão bem que mais pareço fazer Snowboard nos Alpes Suiços com o Ipod nos ouvidos, alheio a tudo o que me rodeia:

- “Cuidado, Francisco! Vem aí um camião…Do lado direito, cá é ao contrário!!”

- “Não te preocupes, Francisco. Já o tinha visto, vês? Já estamos do lado de cá.”

Tanta segurança e tanta despreocupação de uma só vez.

No fim do jantar não acabei o frango. O empregado aproxima-se:

- “Já acabei, pode levantar. Obrigado.” Disse sorrindo.

- “Não gostou?”

- “Gostei, gostei. Estou é com pouca fome.” (Mentiroso! Aposto que quando chegares a casa vais comer pão com Nutella.) O empregado não pareceu convencido.

Quando me dirigi para a saída, o chefe de sala que me olhou de lado quando entrei por estar mal vestido, abordava-me agora amigavelmente (ora 30% do total são…saquei do telefone para fazer a conta, sou péssimo em contas, nunca soube a tabuada, enfim…deixei uma boa gorja):

- “Estavas a escrever sobre nós?” perguntou.

- “Euh (folheei, surpreso) Um bocadinho, por acaso. Mas escrevi bem de vocês, não se preocupe.

- “Mas estás a defender uma tese?”, insistiu

- “Não. Estou a escrever na net.”

O homem riu-se mas não percebeu. Aí apeteceu-me dizer-lhe:

- “Vem aí ao café Mundo’s, do lado de lá da rua, ali ao lado da embaixada da Africa do Sul, eles têm net e eu mostro-te. Ou então anota ai, o endereço é http://mocambasmocambo.blogspot.com. Não, ponto com, com “m”. Podes comentar que eu gosto.

Achei que era demais. Arrependi-me. As coisas de que mais me arrependo na vida são todas elas, sem nenhuma excepção, coisas que queria ter feito, vivido, aprendido, ouvido, e não fiz, vivi, aprendi ou ouvi. O exemplo clássico insere-se no capítulo dos amores e raparigas. Não vou entrar por ai…

Agora que clico em “Ver Blogue” sinto que por detrás da minha cadeira, no escuro, vocês estão ai a olhar o ecrã do PC, inclinados, lendo avidamente estas palermices. Mãos na mesa onde escrevo. Sinto uma mão no ombro direito, está morna. Ainda não descobri quem é. Quem é? Quem está aí?! Pai, Mãe, António, Béné, Sofia? Tenho medo de me virar e de apanhar um grande susto ao ver um vulto flutuante ali no canto. Franciscos? Diogos? Filipa? Por favor, não façam barulho! Tita? Duarte? Não, não são vocês, vocês estão a trabalhar. Alguém falou. Tito? Também não. Ele não fala agora. Está longe. Só escreve. Eu também estou longe, por isso escrevo, para nunca mais esquecer. Alguém soprou no meu ouvido, cheira a pastilha de Melão. Madalena?