domingo, 16 de agosto de 2009

A Viagem


“Um dia, porém, depois de mais uma paragem para colher imagens, ao regressar ao jipe vi que tinhas ficado ao lado da pista, a olhar em frente, como se te tivesses desligado de tudo. Ia gritar-te, buzinar-te, quando qualquer coisa na maneira como tu estavas em pé a olhar o deserto, qualquer coisa na maneira como tinhas as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça ligeiramente inclinada de lado, o cabelo varrido pelo vento, me fez ficar quieto ao volante. E fiquei assim a observar-te até que tu te virasses e visses que estava à tua espera. Aprendi que é preciso dar tempo aos outros para olharem”. Miguel Sousa Tavares, in No Teu Deserto.


Sophia tinha a imagem que eu tenho da Viagem. Tudo se espelha. Nada se cria. Tudo continua. O melhor da vida é mesmo o mais difícil, a viagem.

A Viagem, a verdadeira viagem, é aquela finda a qual não se chega a casa, aquela que não desemboca na chegada, em que apenas portagens existem, daquelas de se tirar bilhete, nunca das de pagar, porque o ciclo nunca acaba, apenas se transforma: montanhas, planícies, desertos, lamaçais, luz escura.

A Sofia, agora minha personagem, tem medo porque nada pára e nada lhe é familiar porque nunca nada lho foi. Grita mas nada lhe devolve o eco, aliás, nunca chega a ouvir a sua própria voz. Mesmo assim continua a tentar desvendar o ser, o viver e o acontecer, nunca o amanhecer pois esse passa a anoitecer, não perdura.

Começa então a ficar viciada, viciada em, em mudar, em transformar, em encontrar, em perder, em conhecer, em esquecer (Sofia leu a Viagem pelo Oriente de Hesse, “Toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens reflectindo o mais violento e mais cego dos desejos humanos: o desejo de esquecer”), se possível, rapidamente, apenas deixar o cheiro emprenhado nas suas peles, delas nunca mais se lavar, sem se aperceber que com elas está suja, viciada, colada em aprender, em criar espaço para novas futilidades, falas e expressões, velhos desconhecimentos conhecidos de todos, tradicionais histórias de actuais acontecimentos de citadinas personagens formatadas e computorizadas, programadas para não se tornarem em repetidos cromos da interminável e improrrogável caderneta humana, em espetar aquela afiada e dolorosa agulha da mudança, da revolução e da reviravolta, da inconsistência, da agitação e da falta de rumo, de casa, de paz e de descanso, mas que provoca tamanha adrenalina, subidas e descidas de moral, descontrolo reconfortante e despreocupante, por vezes angustiante mas anestesiante. It’s a Rush!

Já picou, já furou, já viciou e já fez efeito. Sofia já não a quer mais, quer outra. Viagem.

Quem já viajou sabe, quem nunca viveu, cala. Está no escuro, não acordou, não nasceu para o mundo, apenas nele ou nem isso, nem nele se concretizou, não arriscou, não perdurará, morrerá, não se transformará em terra dele, ficará corpo, carcaça, podridão. Cuspir-lhe-ão, chutá-lo-ão, rasgá-lo-ão, rejeitá-lo-ão. Passará a corpo sem alma, a exterior sem interior, a pão sem miolo, a lágrima sem dor, a fala sem som, a comida sem gosto, a chuva sem nuvem, a palavra sem letra, a cantor sem musica, a sapato sem pé, a homem sem Deus, a pai sem filho, a país sem terra, a África sem continente, a ódio sem amor, a conhecimentos sem amigos, a professor sem alunos ou livros, àqueles sem estes, a nós sem eles, a eu sem tu, a mim sem ti. Sozinho.

Sofia também já tentou imaginar o mundo sem mundo, e nada, nunca conseguiu. O Miguel, no meio do deserto, escreveu-lhe uma vez, dizendo: “Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há musica, nem ruído, nem som algum […]”. A imagem que ela tem é a de um possível painel quadrado preto escravo, no meio, alguma estrela, no lugar da terra não se descobre nada, está num permanente contínuo regresso, tudo ou mesmo nada passa por si a correr ou mesmo devagar, de frente para trás, ou será a imagem que arranca, ela, de trás para a frente, passando pelo nada e ainda pelo tudo? De repente alguém, talvez Deus, faz Zoom-Out. Então, aparece a totalidade, branca, agora preta, cinzenta, e preta outra vez. E a face de Sofia, de perfil, no canto superior esquerdo do painel, e volta tudo ao mesmo, ao já visto, ao começo do imaginário. Repete-se. E fica nisto eternamente. Na dúvida ("What if, what if I got it wrong, and no poem or song could put right what I got wrong?”), mas pelo menos na única certeza que lhe dá conforto, a da eterna dúvida.

São mais as perguntas do que as respostas, mais as interrogações do que as afirmações, os pensamentos do que as conversas. Por isso Sofia fica calada, porque estar calada é estar atenta, e porque estar atenta é ter a capacidade de estar distante estando perto, de estar calma quando os outros estão agitados, de ver para além da vista, como uma avestruz. Aqueles que muito falam não estão atentos, estão na lua. Aqueles que estão calados não estão a dormir, estão a observar e a engolir, absorver o que se passa, são bichos mais activos do que se pensa. Passivos são, outra vez, aqueles que estão na lua.
Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio.” Confidenciou-lhe Miguel, desertando.
Falar não é encarar a verdade, é fugir-lhe a 7 pés. Observá-la é encará-la nos olhos, sem medo!
Em vez disso, Sofia escreve porque: “Escrever é usar as palavras que se guardaram”; daí também que ela não fale muito, porque: “se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer” escreveu-lhe ainda Miguel, quase romanceando.

Por isto tudo é que, para Sofia, a viagem é para ser apreciada, não vivida, porque quem segura o leme não é ela, é ele, talvez Ele, quem sabe? Ela?


[as citações são, tirando duas, expressões de Miguel Sousa Tavares]

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