quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Cláudia

A Cláudia é ávida leitora. Inteligente e perspicaz, é cautelosa. Para ela, tudo não passa de um jogo de amor-ódio, de detesto-te e de quero-te agora neste instante, de nem te posso ver à frente e de não passo sem ti. És a minha droga, o meu pó branco, o meu LSD. Por isso, logo que conseguir que ele se entregue a ela, a primeira coisa que lhe fará será cheirá-lo de cima a baixo, tratarei bem de ti, prometo! No seu caso, não é ela que escolhe, é ela que é escolhida, sempre assim foi, desde menina. Não há tempo nem hora, momento ou local, o tempo é indecifrável, o sítio indiferente: pode ser num restaurante ou na rua, num parque ou num autocarro, na confusão do dia ou à luz da noite, num grupo de amigos ou num recanto perdido, repleto de solidão. O importante é que eles lá estejam os dois, que os seus destinos se cruzem, se entrelacem, que não haja ruptura possível.

Há muito que a Cláudia está sozinha, que ninguém lhe faz companhia nos longos caminhos que ultimamente tem percorrido. Precisa de ajuda e de aconchego. Algo que a faça renascer, e nunca mais se afogar naquelas profundas águas mortas de onde surgem aqueles braços castanhos moribundos chamando pelo seu nome, para a levar e nunca mais a trazer: não serás mais transparente ou invisível, vem para um mundo onde nada existe e tudo se realiza. A vontade é muita, a tentação imensa. Não fossem os outros, os que estão perto mas nunca lhe chegam, já se teria entregue, içado a bandeira branca e poisado as armas. Desarmada e prevenida, teria sucumbido, caída na tristeza eterna, no vale dos vivos ainda mortos, onde apenas gritos e ajudas se ouvem, onde todos querem e nenhum pode, onde todos são e cada qual não existe.

Ela sabe que é preciso fleurtar, entusiasmar, atiçar, para que não seja mais uma na multidão do olhar dele. Porque razão haveria ele de a escolher, logo ela, cheia de problemas, triste e feia? Borbulhas e acne são a sua essência, ela nasceu para aquilo, para se lamentar eternamente. Por isso Cláudia passa por ele sempre que pode, é capaz de lhe tocar, até mesmo, num acto de loucura, de lhe piscar o olho, com sorte nem estará a mirar aquela loira morena de olhos verdes azuis, talvez tenha sentido o seu perfume de indiferença, captado o seu charme, e talvez não a sua banalidade.

Até que o dia chega e os astros se alinham. Ao passar por ele mais uma vez, já sem qualquer esperança ou mesmo grande interesse, ouve-o que a chama. Deve ser engano, nunca a olhou, nunca lhe falou, e agora até lhe assobia lá de longe. Os amigos todos à volta dele, com grandes sorrisos malandros, bem coloridos e sublinhados, indubitavelmente reveladores. Põe-se a caminho, respondendo presente ao tão aguardado chamamento. Finalmente, consegue entrar para aquele clube tão restrito, onde apenas os sábios nestas matérias são convidados. Para Cláudia, ele já é membro honorário.

De sorriso tímido nos lábios, pega no Samuel pela mão e acaricia-o de raspão, como que não tendo tempo a perder. Dirigem-se para a porta de saída onde só os dois sabem o que poderá acontecer. De repente, são interpelados por uma senhora, velha e toda enrugada, de óculos na ponta do nariz e com mau hálito. Está tudo perdido, pensou.

- “Desculpe! Esqueceu-se de pagar. São 13,50€. Vejo que leva Samuel Beckett, En Attendant Godot, boa escolha. Vai gostar, vai ver. Boa leitura".

Sinto que voltei a ganhar o amor pelos livros, pelos seus cheiros, pelas suas histórias, mas não pelas suas imposições, apenas pelas suas lições. Não há nada comparável ao sentimento de descobrir um novo livro: o olhar, o sentir, o pesar, o cheirar, o folhear, e finalmente, o desvendar. Descobrir o que faz dele único e merecedor da dispensa do nosso precioso tempo é algo simplesmente gratificante: o porquê daquela capa, daquela cor, daquele título, a disposição das letras, o desenho escolhido. Será que existe mais alguma coisa que o autor nos quis contar para além do óbvio, mas de maneira a que unicamente os mais atentos e perspicazes o pudessem descobrir, como quem conta um segredo ao ouvido e, de seguida, pisca o olho, ficando os outros, à volta, a olhar repletos de inveja?

O que gosto nos livros é que são feitos para aprendermos, mas sobretudo para sobre eles reflectirmos. Podemos interpretá-los como queremos, adapta-los à nossa experiência. Podemos incliná-los para o lado que nos dá mais jeito ou que achamos mais justo. Por isso podem também tornar-se perigosos, pela ausência paternal do autor que deixa de estar do nosso lado a explicar-nos o que quis dizer.

Aprendi que muitas coisas não se dizem, guardam-se cá dentro. É uma pena. Todos nós podíamos ajudar-nos mais uns aos outros. Percebi que são poucas as pessoas que querem ouvir, se é que alguma. Por isso há quem escreva, para dizer aquilo que ninguém quer ouvir, na esperança que eventualmente as queiram ler. Assim, essas pessoas, sempre poderão defender-se dizendo que nunca ninguém lhes disse, não os avisaram, porque não há testemunhas, apenas o leitor e o autor, num permanente e honesto “tête-à-tête”, sendo que a única parte capaz de quebrar este elo será o leitor.

1 comentário:

  1. Xicão, amigo, irmão,

    Gosto de ver que tens absorvido a leitura e isso nota-se neste post. Os artigos estão cada vez melhores e mais criativos.

    As saudades por aqui são muitas, e se por um lado no ano passado fui eu que desapareci e fui para o Brasil, desta vez vejo o reverso da medalha e apercebo-me das verdadeiras amizades que damos por adquiridas.

    Acho fantastica esta tua aventura, e mais do que uma simples viagem de um jovem viajado, sinto que tens absorvido muita coisa e que tem realmente sido para ti uma nova experiência de vida, e fico muito contente com isso.

    Li com tanto vigor este teus ultimos artigos que não me pude conter e tive que mostrar alguns aos meus pais, que, como não podia deixar de ser, ficaram impressionados.

    Espero que continue a correr tudo bem e que continues a ter experiencias novas e enriquecedoras, sempre para a frente, sempre a aprender, e sempre com esse teu fantástico humor que já te é tão característico. E quando bate aquela saudade e solidão lembra-te que estamos todos aqui a pensar em ti tambem com saudades, e que esta experiencia toda te vai dar muitas histórias para contar nos cafés, e que podes sempre mandar um toque que o pessoal liga...

    Ainda te vou tentar ligar esta semana para falarmos com mais calma.

    Keep on rocking boy. It ain't easy livin' la Vida Loca...

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