sábado, 8 de agosto de 2009

Sábado à tarde


Um dia hás-de ir para África. Escolhe Moçambique. É ali que se sente o peso da nossa maravilhosa aventura, da nossa viagem, da nossa ousadia, do peso dos nossos antepassados. Se sentires o que eu senti, não trairás a nossa memória. Não te encantes com as sereias que te chamam. Amarra-te ao cheiro da terra molhada.” Aniceto Afonso, in O Meu Avô Africano.


O meu caderno e o meu Avô Africano algures na minha mão esquerda, o braço meio flectido tal Sr. Doutor. Uniball na minha mão direita, abre e fecha a tampa sem cessar.

Costa de Maputo 15h59, o sol começa a ameaçar ir-se embora. Avenida Friedrich Engels paralela à Julius Nyerere mais perto do mar. A residência da Embaixada de Portugal marca presença. Do lado do mar, lado direito, existem pequenas parcelas de jardim mal arranjadas: por baixo da relva não existe terra, existe sangue, terra vermelha, cor de barro. Alguém uma vez disse que em África a terra era vermelha por causa dos litros de sangue já derramados, tantos que, emprenhados na terra, nunca mais desaparecerão para que nunca mais nos esqueçamos, e nunca mais se repitam as atrocidades cometidas no passado e no presente. Para lá dos pequenos jardins, não existe qualquer protecção: uma queda de 30 metros, fácil. Lá em baixo a marginal, meia esburacada. De vez em quanto passa um jipe, vai em sentido contrário para mim. No canto do lado direito está ancorado, lá em baixo no fundo, o clube náutico. Uma esplanada, guarda-sóis vermelhos, várias pessoas, algum vento. À volta da piscina, 15 metros onde algumas pessoas nadam, o empregado negro serve às mesas. Guarda-sóis amarelos.

Na Friedrich Engels, agora nas minhas costas, existem bancos verdes à portuguesa. Do lado esquerdo, o mar de costas, um pai negro brinca com a filha vestida de cor de rosa, bonito contraste. Um vendedor passa com um carrinho de mãos, de empurrar, uma carripana velha e ferrugenta. O pai pára-o e compra um chocolate para o seu amor mais recente. A filha excita-se e aponta a guloseima enquanto o pai a abre. Do outro lado, uma avó branca e loira traz a sua neta, negra, às costas aos saltinhos. Estão animadas. Aqui existem muitas misturas, não estou habituado mas é do meu agrado. São sul-africanas. Agora no chão a neta anda de trotineta. Vai ter com a filha e faz-lhe festinhas. A avó detém-na, cheia de vergonha, I’m sorry, sir. Continuam o seu caminho, passam pela embaixada. No fundo da rua, a neta vira-se e, de londe, acena-me dizendo adeus. Bye-Bye!

Continuo o meu caminho com a companhia de Engels, pessoa calada, infelizmente, o mar ainda do lado direito. Mais à frente, olhando o mar, algumas colunas brancas em forma de U sustentam um tecto de verduras. Forma-se como que um corredor abrigado da chuva, não do vento. Lá dentro os mesmos banquinhos portugueses.

Ainda mais à frente, do lado direito, um caminho parece que se atira da colina abaixo, curva contra curva. Com vista para o mar, ainda os banquinhos, desta feita sem cor nenhuma: apenas engessados em cimento. Em cima de um deles, um jornal, as parangonas: “Sabe o que é uma Úlcera Tepática?”. Do lado esquerdo do caminho, sempre seguros na colina, vigiando o mar, vários andares muito baixinhos e discretos. Alguns deles em vez de varanda desvendam uma piscina no seu lugar. Gostava de viver aqui. Muito.
Um velho negro vem a subir em sentido contrário, não me olha, é cego, mas vê-me, melhor do que eu a ele. Dando-lhe o braço, um miúdo ajuda-o no seu caminho. Olhou-me nos olhos e fez-me sinal com as sobrancelhas, levantando-as. Retribui o gesto.

Sentado no passeio da Avenida Barnabé Thaiwé oiço o barulho do vento passando por entre as folhas das palmeiras. Barulho novo, nunca antes o ouvira. Queria tanto estar aqui com os meus amigos e primos, mostrar-lhes isto, irmos prós copos e conhecermos o povo moçambicano, lá no campo, em Boane ou em Marracuene, talvez em Moamba.

No passeio, por detrás de mim, passa um casal sul-africano branco, com seu filho negro no carrinho, estão em grandes gargalhadas os três. Do filho, mãos na parte da frente do carrinho, apenas os olhos, grandes e redondos, se vêm.

Um dia também quero estar assim: uma mulher a meu lado, um filho a meus pés, tímido, agarrando-me na perna.

1 comentário:

  1. Tenho adorado ler o teu Blog!
    Que tal os livros que te demos? Têm dado jeito?

    Fazes muita falta por aqui..

    Grande beijinho

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