sábado, 8 de agosto de 2009

Eu, Mia Couto.

Sabes porque é que o Mia Couto se chama Mia, diminutivo? Não, não é o nome dele, embora seja moçambicano e nem sempre estes nomes sejam vulgares, não, não é o nome dele. Na verdade não sei qual o seu verdadeiro nome. Foi-me dito que talvez fosse Francisco.

- “Não, talvez não fosse Francisco. Ele tem um irmão que se chama Fernando.” disse aquela rapariga bonita, ainda dentro do carro.

Quem me dera que fosse Francisco. Era mais um. Acredito com todas as minhas forças, e esforço-me para tal, que todos os Franciscos são boas pessoas. Acredita. Sempre que conheço um novo Francisco tento aplicar esta teoria:

- “Todos os Franciscos são boas pessoas, sempre foram e sempre serão.”

Às vezes dou por mim a repetir na minha cabeça esta frase. São boas pessoas, têm de ser. Obrigo-me a acreditar nela.

- “Este Francisco, deixa cá ver os defeitos dele.”

Mas a conclusão é sempre a mesma. Defeitos à parte são sempre boas pessoas. Não conheço nenhum Francisco que seja mau. Ainda bem. É nome sagrado. É como Portugal. Acredito que sobre o nosso país se deitou Nosso Senhor, não é por acaso que somos dos povos mais crentes da Europa (sim, ao contrário do que o João Tiago uma vez disse, que só me apeteceu dizer-lhe: “O Senhor não é digno de ser Português, tem o direito de ser contra a Igreja, não tem o direito de transformar o seu país naquilo que ele não é.”), somos pouco conflituosos, temos grandes valores, e que acolhemos Nossa Senhora de Fátima. Lembra-te, foi Nossa Senhora que escolheu Portugal, escolheu-nos a nós, escolheu-me a mim e a ti. Nunca te esqueças disso. A nós, para sermos mensageiros do mundo.

Se nascesse outra vez queria ter-me chamado Francisco Maria. E gostava de ter nascido em Portugal.

Naquele dia em casa do Moisés, falava-se de diplomacia:

- “Sabe o que é que quer dizer CD, nas matrículas, aqui em Moçambique?” perguntou o anfitrião, com ar traiçoeiro.

- “Claro, Corpo Diplomático” respondi pronta e orgulhosamente.

- “Não! Isso é no resto do mundo. Aqui é Come e Dorme. Ahaha” rematou.

Foi Golo. Aplaudi de pé, tal adepto eufórico. Alguém chutou para canto:

- “Cuidado que o pai do Francisco é diplomata!” ouviu-se.

Se o Moisés fosse branco teria notado que tinha corado naquele instante. Deu-me vontade de rir descontroladamente pela situação em que se tinha enfiado. Gosto muito da simplicidade natural deste personagem, homem agradecido e em paz com a vida, parece-me. Miúdo nascido pobre numa aldeia do interior de Moçambique, viveu sem electricidade toda a sua juventude.

- “O meu primeiro par de sapatos foi o 42!” disse ontem à mesa. Tentei imaginar.

Os seus filhos, agora noutro continente, dizem para ele não ser mentiroso. Não têm a mínima noção daquilo pelo que o pai já passou. Ainda não.

- “Toma lá este dinheiro. Agora vais para um país chamado Portugal, ali na ponta da Europa. Vais para uma cidade chamada Porto. Vais estudar Economia na FEP” foi-lhe dito.

Estávamos em 1985 e Moisés é inconsciente. Não sabe para o que vai. Quando lá chegou os portugueses falavam rápido demais:

- “Não percebia nada daquilo” disse, enquanto engolia uma garfada de peixe.

Ainda no aeroporto de Maputo deram-lhe um casaco amarelinho. Imaginei o contraste. Sorri por dentro.

Hoje é homem influente e está bem na vida. Moisés podia nem ter percorrido este caminho, gostaria dele na mesma, do ser humano. E se o tivéssemos visto no meio do campo a laborar a terra? Não teria mudado muito a minha vida (melhor dizendo, até teria, não estaria a comer este maravilhoso peixinho, aqui em casa dele, em frente ao Jardim dos Namorados). A dele teria. Quando sai de casa dele, à noite, pôs o braço à volta dos meus ombros enquanto falava com o resto dos convidados. Senti-me amigo.

- “Homem terreno, nascido de mulher, empanturrado de excitação” disse a amiga Mafalda.

Não percebi, mas gostei. Soube-me a Doce de Leite.

Mas Moçambique não é mais um país pobre, não. Os padrões é que são diferentes! As pessoas não andam vestidas com trapos, isso achamos nós. Isso é miopia dos teus olhos de europeu. E se nós andássemos como eles, eles já não andariam vestidos de trapos, pois não? Às vezes podes ser mesmo formatado. No fundo o mundo ocidental vive numa verdadeira ditadura, a da imagem e dos preconceitos.

- “Neste país não há padrões, é disso que eu gosto, o padrão é não haver padrões. Provoca esta diversidade que vemos, inexistente na Europa, não achas?” reflectiu a Maria José.

Pádaria Millenium, uma verdadeira barraca:

- “Ahaha, não posso. Que giro!”

Não, este país não é pobre:

- “A maior pobreza é não se ter consciência da riqueza que se tem.” Ouviu-se.

Nós portugueses somos bem mais pobres que estes aqui. Temos tudo, tivemos ainda mais. Só nos lamentamos, choramingamos encostados aos muros, para não apanhar sol, está muito quente, diz ele. Pff..!! Acorda Portugal!

Mas aquela rapariga do carro era mesmo bonita, não era? Não tinha nada de especial, mas era gira. Não era ela que era gira, era a pessoa que ela é.

Depois do jantar fomos deixar a Célia a casa. Estava lá um gato preto, de olhos amarelos. Olhou para mim e fugiu, entrou por entre as grades da casa da frente. O gato, o que faz ele? Mia. Quando era garoto, o Francisco também miava, falava baixinho, por isso ficou Mia. E de quem era a casa da frente? Era do Francisco. Do Mia Couto. Coincidência?

- “Encontrei o Santo Graal” senti.

Kanimambo, Senhor, pelo dia que me ofereceu hoje. A si lhe ofereço este relato.

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