quinta-feira, 27 de agosto de 2009

You've Got Mail


A saudade pode ser uma repentina estiagem na boca, um lume frio na garganta? No abafado daquela sala, engoli em seco perante o poder evocador da voz de um ausente.” Mia Couto, in Jesusalém.

E contou-lhe uma história, porque não gosta de sermões ou de leituras escritas. Porque, tudo o que é dado de antemão é antecipadamente adormecido. Também, porque as histórias são o meio ideal para se contar aquilo que não se tem coragem para dizer. Assim, poderá ela desvendar o seu verdadeiro sentido.

Um certo dia, alguém escreveu: “ […] as palavras podem ser o arco que liga a Morte e a Vida. É por isso que te escrevo. Não há morte, nesta carta.”. Apenas vida. Isso mesmo. Vida, luz, amor e confraternidade. Deixadas para trás as brigas, as invejas e as injustiças. Até mesmo as rupturas. Aquela mesma pessoa mandou outro alguém dizer: “ […] tive as minhas mortes, felizmente, todas elas passageiras”. Podemos morrer várias vezes ao longo da vida, contudo nada está realmente morto até que esteja enterrado. Por isso é bom que se vá morrendo, se transformando, se mudando, talvez se adaptando, nunca se enterrando. Morte, não tem de ser sinónimo de perda.

Abandonado e Ndjira sempre viveram juntos, sempre fizeram tudo aos pares. Habituaram-se a pensar a dois, mesmo quando ainda eram um só. Era como se fossem irmãos gémeos. No meio de tantos estranhos e de múltipla novidade, eles eram a certeza mútua, o passado e o futuro dentro do efémero presente, projectado sobre o que haveria de vir. O corrimão quando as escadas são demasiado íngremes, o andarilho quando as pernas ainda não são posse, alheias. Os amigos eram os mesmos, assim como as alegrias e as tristezas. Ambos acreditam num só Deus, mas em vários Anjos, cada qual com o seu nome. Dizem que cada um tem o seu, que os acompanha poisado no ombro direito. Faz-lhes lembrar o anjo ou demónio que insiste em fazer aparições nos desenhos do Tom, o gato, e de Jerry, o rato, sempre apontando o mal, ou anunciando o bem. Ambos são filhos de Deus. Os dois, já passaram por mais do que esta vida e aquela. Juntos. Já percorreram, de carro ou mentalmente, também, vários milhares de quilómetros de terras desconhecidas e de línguas estrangeiras.

Já participaram no poisar de tijolos novos sobre velhos, para construírem novo lar. Assim como, também já conspiraram na destruição daqueles que foram, um dia, seus leitos, para que pudessem passar a ser os de novos estranhos, de língua portuguesa. Também já assistiram, impávidos, cada um no seu canto, sem se olharem, apenas se sentindo ou cheirando, por vezes até se chorando, mas nunca se ferindo, à força destrutiva da inquietante fragilidade das paredes de uma família, ou também, frequentemente, à ausência voluntária de um ente querido, hoje ainda, quem sabe, por conhecer verdadeiramente.

Como Leão para Caranguejo, são fruto dos memos corpos, não dos mesmos hábitos. Uns paternos, outros maternos, alguns irritantes, poucos absurdos, quaisquer genéticos, nenhum reflectido, todos intrínsecos. Embriões distintos, cada qual vai seguindo o seu rumo, percorrendo becos sombrios, por vezes traiçoeiros. Mas sempre de olhos um no outro: um olho nas pedras, outro no irmão mais próximo.

Esta e aquele não se largam, de alma pelo menos. Mesmo que separados por rios e montanhas, ou mesmo por planetas e galáxias, nunca poderão estar distantes porque as memórias não lhes permitem. Ambos sabem que a viagem não é para ser esquecida, mas sim lembrada, revista e rebobinada, falada, um dia quem sabe, escrita.

Abandonado não se importa de estar sozinho porque precisa de tempo para pensar e escrever, da sua gruta, sempre atento aos barulhos familiares, lá de fora. Gosta de estar longe e sentir-se próximo, isso sim. Foi habituado a isso. Olhar as estrelas nos céus, mais densos cá do que lá. No outro dia viu uma estrela cadente, que sorte, este tipo de coisas nunca lhe acontece! É rapaz atento às mais pequenas formigas, mas o elefante, vermelho de óbvio, passa-lhe completamente despercebido, por entre o mato. Gosta de por vírgulas, na sua vida, onde elas não existem. Complicar coisas descomplicadas. Acha que desconsegue aquilo que não alcança, nunca o foi, mas passou a ser rapaz inseguro. Detesta estar acompanhado, no meio de muitos, colado, tal moço num chapa, e, porém, sentir que ninguém o vê ou mesmo o conhece. Ninguém se esforça, isso não. Por isso é que, ultimamente, veste de branco, não anda igual a si próprio, símbolo de transparência, não de pureza. Quase que desistiu do mundo e dos outros, destes sobretudo (“L’Enfer c’est les autres”, lembra-se). Mas o que é o mundo, senão os outros? Sem outros, eu não faz sentido. A Família é o seu Jesusalém, “[…] esse lugar, para além de todos os lugares”.

Aqueloutro, lá de cima, ainda escreveu, numa tarde esperançada: “Quem ama, ama para sempre. Nunca faças nada para sempre. Excepto amar.” E eu acrescento: “Ama, ainda que sem retorno. Amar não é um ou dois, vários períodos. Amar é uno, é amar a viver.”

A ti, que lês e relês atentamente, lá longe, entre o mar e os montes, festas e lareiras, te dedico este texto.

[as expressões são, tirando duas, de Mia Couto].

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