quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Ideias Gerais


Porque há ideias que não se escrevem, dizem-se, cantam-se: http://www.youtube.com/watch?v=-arh4Ug2y1o

- Cá em “moçambas” até as notas estão degradadas, são feitas num papel meio transpirado, sujo e muito pouco resistente. Andam sempre esfruticadas. São, de facto, a moeda de troca daquilo que parecem ser as esperanças abandonadas mas não esquecidas de uma vida mais digna.

- O futebol é assunto quente em Maputo: o Francisco é do Sporting, “ah! menos mal, nãoé do Benfica, isso nunca Francisco. Vá-lá que não me desiludiu. Ahaha”, “Sim senhor, sempre gostei do Sporting não sei porquê, mas aqui sou de um equipa, mas não vou ver os jogos, as pessoas ficam malucas lá, e morrem pessoas que se empurram, que porcaria”; o Jónas, um dos guardas do prédio é do Porto, “Sim, sou do Porto, sempre gostei da cor azul. Onde fica o Porto em Portugal, Doutor?” expliquei-lhe que era a cidade mais bonita de Portugal sobretudo quando vista de Gaia, se possível ao fim da tarde, “que fica do lado de lá do rio Douro”, “já sei, é onde estão os grandes bidons de vinho, não é verdade, Doutor?”, “Sim, são as caves do Vinho do Porto”. Sorri por dentro, senti-me mais uma vez vencedor, mais uma vez, não é verdade? Tu que lês sabes bem disso, admite. Juro por tudo que até hoje ainda não falei com ninguém do teu Benfica, esse clube de chama lenta e consumida. Os putos querem masé vencedores, criadores de sonhos e grandes conquistas, sobretudo nestes sítios, não compreendes? Aqui, o cão do guarda disse-me uma vez que é o Dragão que queima tudo o que se planta lá por Lisboa, e frutos, nem vê-los. Ainda ontem assistia ao debate sobre o financiamento dos partidos políticos de Moçambique (um debate interessantíssimo, mas pré-programado a não produzir frutos) em casa do Moisés, toda a plateia assistia bem vestida (fato e gravata e a habitual pantufa nos pés), e atrás do orador, lá estava ele, um rapaz com aquela t-shirt Nike conhecida pelo mundo fora, anúncio Tmn na parte da frente, quando filmado de trás desvendava-se na gola “a vencer desde 1895”. Uma delícia. É Fogo. Brilhante. Até Já!

Tão longe, e tão perto de Portugal


Todos os dias, logo pela manhã, saúdo a lusofonia dando um trago no meu café expresso curto. huum...Delta. Bom dia Portugal, daqui Maputo!

Carta a Mwanito


“-Vou contar-lhe uma história.
E falou de um incerto pai que não sabia dar tamanho amor pelo seu filho. Certa vez registou-se um incêndio no casebre em que viviam. O homem pegou no menino ao colo e se afastou da tragédia, caminhando pela noite fora. Deve ter superado o limite deste mundo pois quando, por fim, decidiu colocá-lo no chão, reparou que já não havia terra. Restava um vazio entre vazios, rompidas nuvens entre demasiados céus. Para si mesmo, o homem concluiu:
-Agora, só no meu colo meu filho encontrará chão.
Nunca esse menino se apercebeu que o imenso território onde depois viveu, cresceu e fez filhos não era senão o resgaço do seu velho progenitor. Muitos anos depois, quando abria a sepultura do pai, chamou o seu filho e lhe disse:
-Vê a terra, filho? Parece areia, pedras e torrões. Mas são braços e abraços".
Mia Couto, in Jesusalém.

Aqui em Maputo. Ao início da noite. Vejo os mails e como torradas com Nutella. Lá fora chove.
Barulhos de fundo.
Lá em baixo os carros apitam, as pessoas quase que ladram.
Nas ruas o Kizomba alegre não pára.
Estou em África, Mwanito!

Solidão


“Hoje já ninguém vai ao nosso deserto, Claúdia. […] A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo “nada”, eles riscam mentalmente essa viagem dos seus projectos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. As coisas mudaram muito, Claúdia! Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se no Facebook e nas redes sociais da Net onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, “leves”, disponíveis, sensíveis e interessantes. E por isso é que vivem essa estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo a seus pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão.”
Miguel Sousa Tavares, in No Teu Deserto.

Todos os dias adormeces depois de ver “Friends”, numa irracional tentativa de te enganares a ti próprio, tentando convencer-te de que não estás sozinho. Nisso, tentas passar uma rasteira a ti próprio. O pior, é que te apercebes antes que o coûp-de-grace faça efeito. Apercebes-te daquilo que a criancinha em ti está a tentar fazer, antes mesmo de te convenceres do contrário. E aí, sim, concluis que não apenas estás sozinho, como também pareces um palerma de 13 anos. Dás-me pena!

Francisco

Durante a noite acordei várias vezes. Umas vezes porque tinha dores de barriga. Não eram dores de estar doente, eram dores de saudade ou de solidão. Outras vezes porque ouvia sons no apartamento. Aliás, todas as noites oiço sons aos quais não estou habituado: o vento a passar por debaixo das portas, feitas um bocado da mesma forma que as calças dos moçambicanos, mais curtas do que deviam, ou o pássaro que martela com o bico na árvore lá de fora com um cuidadoso intervalo de 3 segundos entre cada martelada. Um barulho muito "tropical". Mas os sons que ouvi de madrugada (o sol levanta-se às 5h3o) eram passos que vagueavam pelo corredor que sai do meu quarto em direcção à cozinha. Não sabia se estava realmente acordado ou se estava mesmo a dormir, o certo é que, acordado ou não, continuava a ouvir as passadas.

Quando sai do quarto um moçambicano estava na sala com um grande sorriso na cara que contrastava com a sua cor de pele bastante escura, mais escura do que a maior parte dos moçambicanos. A postura do homem não se coadunava com o sorriso que esboçava, estava de ombros descaídos e braços abandonados. Este é o Francisco, um dos empregados do edifício onde estou hospedado:

-"Olá!, sou o Francisco, é o Francisco não é? Também sou o Francisco. Está bom? Disseram-me que poderia passar cá por casa durante a minha estadia, não o esperava era tão cedo!" disse-lhe.

-"Sim. Obrigado, senhor."

Apertei-lhe a mão, apertou-me a mão. Logo, poisou a mão esquerda sobre a parte de cima da mão que lhe estendera, no que me parece ser um hábito dos moçambicanos mais velhos, uma forma educada de se apresentar e conhecer outrem a quem também mostram respeito.
O Francisco parece tímido, mas não é. É bastante falador. Contudo, quando não sabe o que dizer deixa escapar um:

-"Sim. Obrigado, senhor." E não olha nos olhos.

O Francisco é um homem bom. Aliás, essa é a imagem que tenho da generalidade dos moçambicanos desde as minhas primeiras recordações de infância na Africa do Sul e depois, mais tarde, em Lisboa com aquele que foi, talvez, o meu primeiro melhor amigo, o Miguel. O Miguel trabalhava para nós na Africa do Sul e aceitou vir connosco para Lisboa até decidir voltar para Africa. Agora que penso nisso, não me lembro de me ter despedido dele em Lisboa.

Se puxarmos por ele, o Francisco revela-se um grande conversador, um verdadeiro opinador compulsivo acerca da trivialidade dos assuntos que nos rodeiam:

-"Costuma chover assim tanto, Francisco?" Perguntei.

-"Não! Só chove quando está mau tempo, senhor. As pessoas queixam-se que chove, que chatice! Mas é bom chover. É bom. É bom pra gente, faz bem." Disse, gesticulando com as mãos viradas na minha direcção como que querendo agarrar um invisível objecto de uma forma que me era desconhecida.
Ao mesmo tempo ia abrindo a boca e os dentes brancos voltavam a aparecer. "Estranho, não tem cáries", pensei.

-“Mas costuma haver muitas cheias destas? Na baixa, passei lá ontem, havia carros submersos!” investi.

-“Não, normalmente só há cheias quando chove muito, senhor. Mas é bom a chuva, é bom para a gente da agricultura, é bom para o comer. Sim.”

O Miguel tratava-me por “menino”. O Francisco trata-me por “senhor”, uma vez até me chamou “Doutor”. Apercebi-me que nestes últimos 19anos talvez tenha crescido um bocado.

O Francisco não é parvo nenhum, bem pelo contrário. É uma pessoa esperta e activa, na constante procura de melhorar aquilo que faz:

-“Encontrou alguma falha?” perguntou.

-“Desculpe?”

-“Sim. Não tenha medo de dizer os erros que viu. Os erros são bons. Agente aprendemos muito com os erros”.

-“Não, de todo! Está tudo óptimo, a casa está muito bem e a casa de banho está limpa, obrigado.”

-“Se vir alguma coisa, essa coisa está fora do lugar, me diz que eu muda essa coisa do lugar” afirmou.

-“Está bem, não se preocupe que eu digo, mas está tudo óptimo” disse.

Tinha um blazer cinzento muito espesso, daqueles de inverno e que já não se usam, e uma t-shirt preta por baixo. As calças eram de um tamanho acima, e calçava o que pareciam terem sido uns mocassins castanhos, mas que hoje já não passavam de umas confortáveis pantufas.

O Francisco foi o meu primeiro contacto com o povo moçambicano. O Francisco é um homem bom.

Dedicatória




Aos meus Pais e Irmãos.
A Tia Tété.
Aos bébés Francisco "Francis" José e Pedro Maria. Só porque sim.
Áquela pessoa amiga que um dia me relembrou o mais-que-óbvio, "La Vie est Ailleurs".
A todos aqueles de quem estou longe.