quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Julius Nyerere. Filme. Restaurante. Vergonhas. Vocês desse lado.





Hoje, na Julius Nyerere houve um apagão geral, mas apenas do lado de lá da rua. Geral, portanto.

A Julius Nyerere é uma das principais ruas do centro da cidade de Maputo, da parte de cima da cidade, e que tem vista para o mar lá em baixo, em contraposição com a parte de baixo da cidade, a baixa, onde se situa por exemplo a Gare dos Caminhos de Ferro de Moçambique, uma estação lindíssima, ainda do tempo colonial, hoje restaurada. Li algures na net que, curiosamente, nessa mesma estação foi construída uma nova entrada no âmbito das rodagens do filme “Blood Diamond” com Leonardo Di Caprio num dos principais papéis. O filme em causa pretende retratar mais um dos grandes problemas existentes no continente africano, a situação gerada pala existência de um mercado de diamantes que envolve milhares e milhares de dólares todos os anos. O filme passa-se em vários países mas neste caso pretendia retratar a passagem do personagem pela Serra Leoa, daí que Moçambique, se bem me lembro, não conste no filme qua tale.

Como já não tinha comida para jantar hoje em casa, tinha mesmo de ir a um qualquer restaurante aqui perto. Todos afectados devido ao dito apagão, que fazer? Com algum dinheiro no bolso (muito para Maputo, ainda mais para o verdadeiro Moçambique) dirigi-me a um dos dois restaurantes abertos. Fui ao primeiro pois o segundo, foi-me dito, era caro. Comi sopa de legumes (cozidos, senão era melhor não comer, já sei), uma meia-porção de frango grelhado (para poupar) e uma Coca-Cola na lata com palhinha (“e fechada, sff!”), sem gelo nem limão (para não ficar doente e voltar de riquitó para Lisboa, porque “para o Hospital Central de Maputo não vou nem que apanhe cólera” pensei). Quando chegou a conta, nem quis acreditar:
- couverts (“aqui?”) = 80 Mt;
- sopa = 80 Mt (“tanto como os couverts?”);
- frango = 320 Mt (“deve ser frango moçambicano”, o brasileiro, exportado, chega a ser mais barato);
- coca cola = 100 Mt (quando cá cheguei comprei 1L por 22Mt);
- TOTAL = 580Mt, 15 € (“não tenho vida para isto!”).

Até senti vergonha de mim mesmo. Acabara de gastar mais ou menos um terço do salário mínimo de Moçambique, ou seja, muito mais do que a grande parte dos moçambicanos ganham num mês, já que duvido que todos os moçambicanos no desemprego tenham acesso a um possivelmente existente (ou talvez não) rendimento mínimo garantido.
Foi a terceira vez que senti vergonha de mim mesmo desde que cá cheguei. A primeira foi logo ao acordar no primeiro dia, 2 de Agosto. Quando despertei estava felicíssimo, logo veio a vergonha. Apercebi-me que o principal motivo da minha viagem tinha sido egoísta: sair de Lisboa, sentir-me melhor, ganhar experiência pessoal e uma vantagem curricular, e só depois (infelizmente, “juntando o útil ao agradável”) ajudar os que precisam. Senti-me culpado:

- “Ir para fora é muito bonito, porque não fazer voluntariado dentro de Portugal?” lembrava-me em Lisboa, ainda durante os exames, uma amiga que admiro.


Até que ponto egoïsmo e altruismo não são as duas faces da mesma moeda?

A segunda vez foi hoje à tarde. No meio de tanta confusão no centro da cidade: carros, camiões, poluição, motas, apitadelas, pessoas e cães no meio da estrada, vendedores de sonhos perdidos e abandonados ou de restos de um monte de lixo sem interesse, todos, rapazes e raparigas, homens e mulheres, mães grávidas e pais mutilados, todos, perseguindo os turistas europeus com ar bem alimentado e perfumado como eu. No meio daquilo tudo, eu, de mocassins escuros com “ponpon’s”, calça beige e camisa branca de mangas arregaçadas, botão de cima desabotoado e fio de prata ao pescoço segurando uma cruz (14.5.95), uma medalha de São Francisco de Assis e um pequeno Agnus Dei oferecido pelo meu avô materno ainda era eu criança, movimento-me tão bem que mais pareço fazer Snowboard nos Alpes Suiços com o Ipod nos ouvidos, alheio a tudo o que me rodeia:

- “Cuidado, Francisco! Vem aí um camião…Do lado direito, cá é ao contrário!!”

- “Não te preocupes, Francisco. Já o tinha visto, vês? Já estamos do lado de cá.”

Tanta segurança e tanta despreocupação de uma só vez.

No fim do jantar não acabei o frango. O empregado aproxima-se:

- “Já acabei, pode levantar. Obrigado.” Disse sorrindo.

- “Não gostou?”

- “Gostei, gostei. Estou é com pouca fome.” (Mentiroso! Aposto que quando chegares a casa vais comer pão com Nutella.) O empregado não pareceu convencido.

Quando me dirigi para a saída, o chefe de sala que me olhou de lado quando entrei por estar mal vestido, abordava-me agora amigavelmente (ora 30% do total são…saquei do telefone para fazer a conta, sou péssimo em contas, nunca soube a tabuada, enfim…deixei uma boa gorja):

- “Estavas a escrever sobre nós?” perguntou.

- “Euh (folheei, surpreso) Um bocadinho, por acaso. Mas escrevi bem de vocês, não se preocupe.

- “Mas estás a defender uma tese?”, insistiu

- “Não. Estou a escrever na net.”

O homem riu-se mas não percebeu. Aí apeteceu-me dizer-lhe:

- “Vem aí ao café Mundo’s, do lado de lá da rua, ali ao lado da embaixada da Africa do Sul, eles têm net e eu mostro-te. Ou então anota ai, o endereço é http://mocambasmocambo.blogspot.com. Não, ponto com, com “m”. Podes comentar que eu gosto.

Achei que era demais. Arrependi-me. As coisas de que mais me arrependo na vida são todas elas, sem nenhuma excepção, coisas que queria ter feito, vivido, aprendido, ouvido, e não fiz, vivi, aprendi ou ouvi. O exemplo clássico insere-se no capítulo dos amores e raparigas. Não vou entrar por ai…

Agora que clico em “Ver Blogue” sinto que por detrás da minha cadeira, no escuro, vocês estão ai a olhar o ecrã do PC, inclinados, lendo avidamente estas palermices. Mãos na mesa onde escrevo. Sinto uma mão no ombro direito, está morna. Ainda não descobri quem é. Quem é? Quem está aí?! Pai, Mãe, António, Béné, Sofia? Tenho medo de me virar e de apanhar um grande susto ao ver um vulto flutuante ali no canto. Franciscos? Diogos? Filipa? Por favor, não façam barulho! Tita? Duarte? Não, não são vocês, vocês estão a trabalhar. Alguém falou. Tito? Também não. Ele não fala agora. Está longe. Só escreve. Eu também estou longe, por isso escrevo, para nunca mais esquecer. Alguém soprou no meu ouvido, cheira a pastilha de Melão. Madalena?

2 comentários:

  1. Francis!

    Gostei muito deste post. Tens jeitinho, tens. Continua!

    Espero que esteja tudo a correr bem :)

    Saudades

    B

    ResponderEliminar
  2. Hello, Francis!

    O post está muito bom!

    Até que ponto o facto de te sentires culpado com algumas coisas e arrependido de outras não será também uma forma de ajudares os outros e, simultaneamente, ajudares-te a ti mesmo?

    Faz bem ter tempo para pensar, para nos apercebermos de que as "dificuldades" que julgamos ter são ninharias e... para sentir saudades da família e amigos.

    Tudo isso é uma aprendizagem, por vezes difícil, mas muito enriquecedora.

    Espero que corra tudo bem por aí ;)

    Bjs com saudades,

    Teresa TM

    ResponderEliminar